Movimento LGBT brasileiro: Nós chegamos aqui de paraquedas?
- Émerson Rodrigues
- 29 de jun. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 3 de jul. de 2023

Hoje é quinta-feira, 29 de junho de 2023, ontem foi "comemorado" o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+. Parabéns, se é que temos algo a comemorar.
Antes que pensem qualquer coisa, não sou pessimista ao ponto de pensar que não devemos comemorar o Dia do Orgulho. Muito pelo contrário. Acredito que comemorar o Orgulho é celebrar a vida; a minha, a sua; a de todos nós, que somos caçados no país, cujo histórico de violações de direitos humanos todos nós já conhecemos.
Queria dizer, apesar de o dia do orgulho de ter sido ontem, que esse movimento de orgulho já é maior que Stonewall. Não desmerecendo aquele movimento, porque entendo ter sido importantíssimo. Mas é que o Brasil tem seus próprios marcos históricos na luta por direitos da comunidade LGBTQIAPN+.
No Brasil, o movimento LGBTQIAPN+ teve um início mais tardio que na América do Norte e na Europa. O início do nosso movimento remonta o final da década de 1970. Em abril de 1978, por exemplo, foi publicado a edição número zero do periódico O Lampião da Esquina, do qual decorreu a criação do Somos: Grupo de Afirmação Homossexual. Em outras palavras, o movimento pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais brasileiros começou em plena ditadura militar, desafiando a censura que assolava o país à época.
De acordo com o Jornal Nexo , a ideia do Jornal O Lampião da Esquina era "dizer não ao gueto e, em consequência, sair dele". O Lampião fazia oposição ao regime ditatorial e veiculava denúncias de violações contra LGBTs.
Ainda de acordo com o Nexo, em 1979 o Jornal Lampião da Esquina abriu espaço para participantes lésbicas, que escreveram um artigo intitulado "Não somos anormais". Em 1981, essas mulheres criaram o boletim "ChanacomChana", vendido no Ferro's Bar, que era um bar frequentado por lésbicas no centro de São Paulo.
Em 19 de agosto de 1983, em razão da proibição de venda do Chanacomchana no Ferro's Bar, participantes do Grupo de Ação Lésbica-Feminista - Galf, com apoio de outras feministas e de gays, driblaram o porteiro do bar e fizeram um ato político, de modo que é frequentemente comparado à Revolta de Stonewall. Eu mesmo escrevi sobre isso na minha Monografia, em 2021, que você encontra aqui.
Em 1980 surge o Grupo Gay da Bahia, em funcionamento até hoje, pioneiro na realização de pesquisas e estudos acerca da vida de pessoas LGBTs no Brasil. Você já deve ter ouvido falar do Relatório de Mortes e Violências Contra LGBTI+ no Brasil; Pois é, ele é produzido anualmento pelo GGB, há mais de 40 anos.
Mais adiante, em 1985, o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, retirou a homossexualidade do seu catalogo de doenças, antecedendo, inclusive a Organização Mundial da Saúde, que só adotou tal postura em 1990.
A Constituição de 1988, por seu turno, em que pese não faça previsão expressa de direitos fundamentais para a comunidade LGBTQIAPN+, prevê uma série de direitos básicos endereçados a todos os brasileiros e aos estrangeiros aqui residentes. Nossa Carta Magna, promulgada após 21 anos de ditadura militar, estabeleceu que a República brasileira constitui-se em Estado Democrático de Direito, cujos fundamentos são a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores socias do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Além disso, a Constituição instituiu como objetivo fundamental do Estado a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, o que permitiu a interpretação do texto constitucional e das leis ordinárias para garantir direitos a comunidade LGBT.
No mais, a Lei da República consolidou que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, sendo certo que brasileiros e estrangeiros que aqui residam terão protegidos o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
No ano de 1995 foi criada a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis - ABGLT. De acordo com informações colhidas no site da entidade, sua criação representa um marco importante na história do movimento LGBT brasileiro, porquanto "possibilitou a criação de uma rede nacional de representação com capacidade e legitimidade para levar as reivindicações do segmento até o Governo Federal e a sociedade como um todos, o que até então havia sido impossível". Ressalto que a AGBLT foi a autora do Mandado de Injunção 4733, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2019, que culminou na criminalização da homofobia como crime de racismo.
Nos anos de 1996, 2002 e 2010, já sob a égide da nova Constituição, a comunidade LGBT foi incluída como grupo vulnerável nos Programas Nacionais de Direitos Humanos, programas cuja missão principal é nortear as medidas governamentais em prol da defesa dos direitos humanos no Brasil.
No ano de 1997 teve lugar a Primeira Parada do Orgulho Gay em São Paulo, reunindo em torno de duas mil pessoas, de acordo com informações da entidade que a organiza. Atualmente, a Parada da Diversidade de São Paulo é considerada como a maior do gênero no mundo, recebendo o título do Guinness Book.
Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia, editou a Resolução nº 01 de 1999, considerando que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade, bem como que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão. Desse modo, o CFP proibiu que os psicólogos exercessem qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, ou que adotassem ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Nos anos 2000, o INSS concedeu o direito previdenciário de pensão a parceiros gays por falecimento ou detenção. E em 2001, é Fundada a Articulação Nacional de Travestis (Antra). A Antra hoje é referência na coleta de dados sobre violações de direitos de pessoas trans.
Por aí em diante, alguns outros direitos foram alcançados. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal, a partir de pedido da Procuradoria-Geral da República e do Governador do Rio de Janeiro, reconheceu a validade jurídica das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. No mesmo ano, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que casais do mesmo sexo também poderiam se casar no civil.
Dois anos mais tarde, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 175 de 2013, proibindo que as autoridades competentes se recusem de habilitar, celebrar casamento civil, ou de converter união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
Em 2015, o Supremo julgou um Recurso Extraordinário reconhecendo que casais homoafetivos também poderiam adotar crianças e adolescentes.
Em 2013, a ABGLT impetrou o Mandado de Injunção 4733 no STF requerendo o reconhecimento de omissão brasileira em criminalizar a homofobia e que fosse aplicada a Lei de Racismo (Lei 7716/89), até que fosse editada uma lei especifica. No mesmo sentido, o Partido Popular Socialista propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26. As duas ações foram julgadas juntas em 2019, culminando na criminalização da homotransfobia.
Em 2018, o Conselho Federal de Psicologia editou a Resolução 1 de 2018 determinando que as psicólogas e os psicólogos, no exercício de sua prática profissional, não colaborarão com eventos ou serviços que contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias em relação às transexualidades e travestilidades.
Ainda, em 2020, o STF decidiu que homens que fazem sexo com homens (gays, bissexuais, pansexuais, etc), podem doar sangue, declarando a inconstitucionalidade da norma da Anvisa que previa tal proibição.
Todas essas decisões já foram tratadas aqui no Cores, na coluna de Justiça.
Fiz questão de fazer esse levantamento histórico para provar que o Dia do Orgulho, em que pese seja uma data internacional, não precisa ser só sobre Stonewall ou qualquer outro evento estrangeiro que causou comoção. Pode - e deve - ser sobre o Brasil e sua luta histórica contra a discriminação.
Precisamos valorizar nossa própria história e nossos marcos. Temos muito 'pano para mangas', então é preciso ressaltar isso, principalmente sendo o Brasil o país em que mais ceifam as vidas dos nossos e nossas. Isso só reforça que, não chegamos aqui de uma hora para outra, de paraquedas. Tudo que conquistamos, foi graças a esse movimento, que, claro, recebeu influência dos movimentos estrangeiros, mas se desenvolveu e ganhou forças aqui.
No mais, no dia do Orgulho, além de celebrar a vida daqueles que, como disse Jota Mombaça, vivem e vibram apesar do Brasil, além de rememorar a luta de todos esses grupos, devemos nos mobilizar para que outros direitos sejam reconhecidos e positivados (garantidos em lei), afinal, não podemos depender eternamente da boa vontade das cortes brasileiras.
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